Iniciação em orisá

No Brasil e em vários lugares do mundo, existem milhares de pessoas que, maravilhadas pelo mistério dos Òrìşá, quer sejam descendentes de africanos, europeus, asiáticos ou de qualquer outra raça do planeta, acabam transpondo as portas da iniciação, surpreendidos pelo paradoxo de defrontar-se com crenças alicerçadas em rituais de rebuscada complexidade e ao mesmo tempo simples de entendimento na sua essência. As cerimônias são alegres, coloridas, embaladas pelo som dos tambores nos quatro cantos do mundo, agregando pessoas de todas as camadas sociais; contudo, o aprendizado ritual e filosófico requer estudos sérios e contínuos, que acompanharão o iniciado pela vida afora.

Que mistérios são esses, ocultos em meio a lendas e ensinamentos de sabedoria ancestral? O que na verdade leva pessoas às mais diferentes tradições afrodescendentes, em busca da iniciação?

1 - O que é Iniciação?

Iniciar-se é possibilitar através de rituais próprios, que o lado divino transpareça. É libertar o Deus Interior que existe em cada ser humano, permitindo-lhe vir à tona e provocar o impulso irresistível, capaz de conduzir à realização pessoal, estabelecendo dessa maneira a mais perfeita comunhão possível com o Universo, com a Natureza, com o Criador, enfim, com a própria Vida, em seu pulsar infinito. Corpo, físico, mente e alma são ritualisticamente preparados para a manifestação divina. Condições propícias são estabelecidas para que a memória ancestral possa florescer nos recessos do inconsciente, produzindo muitas vezes o transe, em suas mais variadas formas e também variados graus. Iniciar-se é nascer de novo, renascer como indivíduo mais forte, completo, potencialmente seguro, com melhores condições para, ao abandonar medos, traumas ou bloqueios, lançar-se inteiro na busca da realização pessoal.

A presença do Òrìşá na vida de uma pessoa depende do fortalecimento do ori para acoplamento do seu aşé, através do ritual de iniciação. Após diversos tipos de ebós, banhos de folhas e borí, o iniciando está purificado e fortalecido para ter plantado no seu corpo a energia do seu Òrìşá. Trata - se de ritual complexo e com características sob medida para a entidade única, que é o iniciando em questão, e o seu Òrìşá. O ritual de iniciação não decorre de desejo próprio, mas depende de prescrição oracular e, conforme o próprio termo- Iniciação - marca, não a concretização, mas o início de um aprendizado e desafios constantes que requerem disciplina e dedicação espiritual. Não implica em qualquer tipo de submissão contrariada, pois o orí é soberano no seu livre-arbítrio. No entanto, uma vez tendo vivenciado a sublime e divina presença do Òrìşá, o afastamento deste, mesmo que voluntário, faz sentir um vazio sombrio que pode até ser confundido – erroneamente - com castigo. O Òrìşá não necessita infringir castigos, primeiro porque, como energia da natureza não depende da adesão de devotos - nós é que precisamos do Òrìşá – e segundo porque a sua simples ausência em nossas vidas, já se caracteriza por si só, como desgraça.

2 - Por que se iniciar?

Conhecer a si mesmo: pressuposto básico para a realização pessoal em todos os níveis. Desde sua origem o ser humano anseia pelo encontro com o Infinito. Essa busca incansável frequentemente provoca verdadeiras batalhas que são travadas no interior do indivíduo, acompanhadas por sentimentos de angústia, ansiedade, inconformismo, ou até mesmo desespero, frente ao desconhecido ou ao irremediável: as fatalidades e incertezas do amanhã, o ciclo da vida e a morte. Todo esse processo destina-se a criação de ambiente propício ao tão sonhado encontro. A história da humanidade espelha essa incansável busca de respostas aos enigmas da vida: Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou? A felicidade é perseguida por todos, sendo muitas vezes um desejo alimentado pela incerteza: "Quero ser feliz, mas não sei bem o que é felicidade". E o ser humano continua a colocar a própria felicidade longe de si mesmo, em circunstâncias exteriores: dinheiro, posição, poder, fama, ou na dependência de outras pessoas: "Se ele - ou ela - me amar serei feliz".

Há milhares de anos, o nativo do continente africano já tinha os mesmos anseios: conhecer seu Deus, os mistérios do Universo, a origem da Vida. Olódùmarè (o Criador), em sua Graça e Poder infinitos, permitiu-lhes conhecer a sabedoria do IFÁ (a revelação): a Criação do Universo e dos seres humanos, os princípios que regulam as relações entre Aiye (a Terra), o Orun (o Céu) e o conhecimento dos Òrìşá, divindades participantes da Criação e intermediárias entre Deus (Olódùmarè) e os homens. Desenvolveram-se rituais iniciativos para os mistérios dos Òrìşá, como forma de realizar o sagrado em si mesmo, ou seja, permitir que o Deus Interior, na figura de um ancestral divino, desperte em cada indivíduo e estabeleça a ponte com o Cosmos tão necessária à realização pessoal, tornando-o assim capaz de fazer escolhas mais acertadas e consequentes em relação à vida e aos semelhantes, na construção da própria felicidade. A compreensão clara de que destino é possibilidade e não fatalidade, é à base dessa realização. O conhecimento das forças que regem o Universo e a Vida nas suas mais variadas formas e meios de manifestação, bem como dos princípios que regulam essa interação é o caminho da Iniciação.

3 - Iniciação: quem, quando e como?

O momento do chamado é diferente para cada pessoa. Para alguns, uma doença difícil de ser curada; para outros, as dificuldades do próprio caminho; outros ainda, buscam fugir às religiões tradicionais por concluírem que muitas delas estão tão voltadas para o dia a dia dos homens e seus interesses imediatos que acabam fugindo à sua real finalidade: promover o encontro do ser com a Divindade, ampará-lo em suas dificuldades espirituais e consequentemente, também as materiais. Alguns ainda são provenientes de outras religiões ou filosofias espiritualistas; finalmente, existem aqueles que simplesmente são tocados pelo Òrìşá, nos recessos da própria alma. Na África o culto está realmente ligado às famílias, mas no Brasil, principalmente a miscigenação, trouxe para toda a população a denominação afrodescendente. A iniciação propriamente dita acontece num período de reclusão que varia de sete a dezessete dias. Esse período é comparável à gestação na barriga da mãe; nesse aspecto, o aposento sagrado representa o ventre da própria mãe natureza. O neófito aprende os mistérios básicos das divindades e da Criação; os costumes da comunidade e os princípios que regulam as relações da família religiosa (hierarquia sacerdotal); as formas adequadas de comportamento nas cerimônias públicas e restritas. Conhecimentos acerca de seu Òrìşá lhe são ministrados: a maneira adequada de cultuá-lo, suas proibições (ewò) quando houver as virtudes que deverão ser cultivadas, e os vícios que deverão ser evitados, para atrair influências benéficas e uma relação harmoniosa com a divindade.

4 - O que pode mudar na vida do Iniciado?

O Destino é dado a cada ser na forma de possibilidade, nunca como fatalidade. Desse modo, quem antes de voltar ao mundo escolheu, por exemplo, ser médico, ao renascer na Terra encontrará em seu caminho situações que o direcionem para essa profissão. Entretanto, isto não quer dizer que necessariamente venha a exercer a medicina. Ele pode a qualquer tempo mudar os rumos da própria vida através do exercício do livre-arbítrio (o que, aliás, é um conceito universal). Cada qual constrói a própria história. Ocorre muitas vezes à pessoa acabar fazendo escolhas erradas e sofrendo consequências desastrosas. Pode ser fruto de um destino ruim, que exigirá tempo e determinação para ser superado. A dor transforma-se em companheira constante. Liga-se a tudo isso os problemas do dia a dia (para não mencionar a situação difícil da sociedade contemporânea); o conjunto acaba provocando sentimentos de impotência frente aos obstáculos e encruzilhadas da vida, ou simplesmente solidão, carência de aconchego, de orientação, de coragem, carência de fé. O Òrìşá pessoal, nesse particular, pode influenciar e muito, prevenindo ou mesmo remediando tais situações, conferindo força e equilíbrio ao seu tutelado, restaurando-lhe as energias, estendendo a ele proteção e o orientando quanto ao melhor caminho a seguir. Contudo, o indivíduo deve permitir que o Òrìşá atue de modo construtivo na sua própria vida. Òrìşá não representa problema no caminho de ninguém, mas pode significar a solução. Através do apoio divino, o ser humano pode criar condições para vencer as barreiras internas e externas para a construção de um futuro melhor.